Violação à democracia e instabilidade jurídica:
No dia 30 de junho, em sessão virtual, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucionais 11 pontos da Lei dos Caminhoneiros (Lei 13.103/2015), referentes a jornada de trabalho, pausas para descanso e repouso semanal.
A decisão, por maioria, foi tomada no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5322, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes (CNTT). Sob o argumento de que as normas invalidadas reduzem a proteção de direitos sociais indisponíveis, a maioria da Corte, decidiu que diversos dispositivos aplicados desde 2015, sob os quais todo o setor se organizou nestes últimos oito anos, é inconstitucional.
Além de considerar se a Lei reduz direitos sociais inalienáveis ou se é necessária a intervenção do Estado na regulação destas relações privadas, o objetivo aqui é explorar, por meio deste caso recente, o essencial debate sobre as consequências temporais destas decisões que impactam a legislação (efeito retroativo). Isto é particularmente relevante quando se observa o regular procedimento de promulgação de uma lei cuja constitucionalidade está sendo questionada no STF e sua aplicação ao cidadão, que é surpreendido com os efeitos passados da decisão atual do STF.
O debate em torno da recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) traz à tona questões fundamentais da nossa democracia, suscitando reflexões sobre a desobediência civil, a segurança jurídica e o papel da mais alta corte da nação.
Na teoria política, a desobediência civil é frequentemente retratada como uma resposta válida à injustiça. Este conceito surgiu a partir da premissa de que o indivíduo tem o direito de resistir a um governo ou a uma legislação que ele considera injusta, quando os meios de mudança convencionais parecem ineficazes ou inatingíveis. No caso atual, o STF retroagiu a aplicação de dispositivos de uma lei em vigor desde 2015, transformando, no retrovisor, cidadãos obedientes à lei em infratores involuntários. Tal situação é um gatilho para sentimentos de desobediência civil, com cidadãos questionando a justiça do sistema legal. Favorece no brasileiro, o sentimento corriqueiro de que há lei que “pega” e lei que “não pega”; e, ou, de que as leis não são para todos.
A democracia, conforme prevista em nossa Constituição Federal, é um regime de governo, constituído sob um Estado Democrático de Direito, onde a soberania é do povo (art. 1º, parágrafo único). O que exige que as regras sejam claras, estáveis e previsíveis, garantindo a segurança jurídica. A decisão do STF, ao retroagir os efeitos da lei, mais uma vez abalou esses pilares. Poderíamos interpretar essa decisão como uma violação do princípio do estado de direito, que é a base da democracia, pois ao menos, ao que se está expresso até o momento, alterou as regras retroativamente.
Por óbvio, espera-se o aviamento de Embargos de Declaração, para ver o STF manifestar-se expressamente sob a modulação[1] dos efeitos da decisão.
Isso está alinhado ao artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, que prescreve que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
No centro desse embate encontra-se a questão da modulação dos efeitos das decisões do STF, especialmente aquelas de caráter vinculante ou de repercussão geral.
O Art. 27 da O art. 27 da Lei nº 9.868/99, que disciplina o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade perante o STF, prevê expressamente a possibilidade de modulação dos efeitos da decisão.
Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
Segundo o dispositivo, ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, o STF pode, por razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, restringir os efeitos da declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
Portanto, a modulação dos efeitos da sentença é um instrumento que permite ao STF equilibrar a necessidade de manter a supremacia da Constituição com as necessidades práticas da sociedade e do Estado, garantindo assim a estabilidade e a previsibilidade do sistema jurídico.
Ora, há uma evidente inversão, do devido processo legal, não conforme à constituição, em especial, artº 5º, II XXXVI, que prevêem:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; (...) XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;
Como regra geral, em toda decisão, o efeito – o que se torna ainda mais relevante e grave, neste caso de declarar-se inconstitucional uma lei vigente, que teve observado todo o trâmite procedimental regular nas casas do Congresso – de qualquer decisão de inconstitucionalidade de repercussão geral, precisa ser a partir da decisão do STF, aliás do trânsito em julgado desta.
Se implementada, tal modulação asseguraria que as decisões só passassem a vigorar após o trânsito em julgado, ou seja, quando não houvesse mais possibilidade de recurso, conforme a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB, art. 6º). Respeitando-se o ato jurídico perfeito.
Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. (Redação dada pela Lei nº 12.376, de 2010)
Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada § 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou
Por óbvio, a modulação automática não é isenta de críticas. Ao limitar a retroatividade das decisões, o STF poderia se encontrar impotente para corrigir injustiças passadas, um ponto particularmente delicado em casos que envolvem liberdades individuais. Por outro lado, na ausência de tal modulação, tem-se a violação da segurança jurídica, um direito fundamental previsto na nossa Constituição (art. 5º).
Em suma, o equilíbrio entre a segurança jurídica e a justiça é um desafio constante na nossa democracia. Neste caso, a modulação das decisões do STF apresenta-se como uma solução plausível, porém, está longe de ser perfeita, já que traz seus próprios dilemas e dificuldades. O desafio de garantir que as leis sejam justas e seguras para todos os cidadãos, independentemente da passagem do tempo, continua a ser uma tarefa pendente na agenda da nossa democracia. Uma solução possível, seria excetuar a natureza da matéria (penal), ou caso individual concreto não vinculante, em que se poderia retroagir e não modular os efeitos do reconhecimento da inconstitucionalidade.
Sob outro prisma, a reflexão, aqui colocada é muito maior: é sobre democracia: A divisão dos três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – é uma das bases de qualquer democracia e é essencial para manter o equilíbrio e a justiça em nosso sistema político. Este princípio é previsto na Constituição Federal, no artigo 2º, que afirma: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
O processo legislativo é uma tarefa crucial do Poder Legislativo. De acordo com a Constituição Federal (art. 59), compete ao Congresso Nacional, composto pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, a elaboração das leis. Esta atribuição envolve várias etapas, como a apresentação de um projeto de lei, a discussão e aprovação nas comissões temáticas e nas duas casas legislativas, a sanção ou veto do Presidente da República, e a promulgação e publicação da lei.
É importante que este processo seja respeitado para garantir a legitimidade e a legalidade das leis que regem nossa sociedade. Além disso, respeitar o processo legislativo é também respeitar a independência e a função do Poder Legislativo, que foi eleito pelo povo para representar seus interesses e promover a legislação necessária para o bem-estar da sociedade.
Por outro lado, o Poder Judiciário, através do STF, tem a função de guardião da Constituição (art. 102 da CF). Seu papel é interpretar as leis e garantir que elas estejam em conformidade com a Constituição. Esta é uma função vital para garantir que a lei seja aplicada de forma justa e equitativa. Entretanto, é crucial que o Judiciário também respeite a independência do Legislativo e não interfira de maneira inadequada no processo legislativo.
Por fim, a harmonia e independência entre os Poderes, assim como previsto pela Constituição, é fundamental para o funcionamento adequado de nossa democracia. O equilíbrio delicado que existe entre o Poder Legislativo, responsável pela criação das leis, e o Poder Judiciário, que interpreta essas leis, deve ser respeitado para garantir a justiça, a segurança jurídica e o bem-estar da sociedade. Uma interferência indevida de um Poder sobre as funções do outro pode levar a inseguranças jurídicas, injustiças e potenciais conflitos.
A democracia, como entendida no contexto moderno, é um sistema que permite que os cidadãos participem diretamente ou por meio de representantes eleitos no processo de formulação de regras sociais. Nessa linha, uma democracia efetiva se estrutura sobre a divisão equilibrada de poderes entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, o que é assegurado no Brasil pela Constituição Federal de 1988.
Todavia, essa divisão harmônica e independente entre os poderes pode ser colocada em xeque quando há uma interferência excessiva de um sobre o outro. Neste cenário, os riscos à democracia tornam-se mais latentes quando falamos de interferências do Judiciário nas atribuições típicas do Legislativo, uma situação que pode levar ao fenômeno conhecido como “judicialização da política”.
A judicialização da política ocorre quando o Judiciário, representado no Brasil em última instância pelo STF, assume um papel de destaque na resolução de questões que, em tese, deveriam ser tratadas no âmbito legislativo ou executivo. Embora o controle de constitucionalidade das leis seja função essencial do Judiciário, ações que ultrapassem essa prerrogativa e invadam o território da criação e modificação das leis podem representar um risco à divisão de poderes e, consequentemente, à democracia.
O excesso de interferência do Judiciário na seara legislativa pode gerar uma série de consequências negativas. Primeiro, pode causar um desequilíbrio no sistema de checks and balances (controle e equilíbrio) que é a base do nosso sistema de governo democrático. Segundo, pode levar a uma erosão da confiança na capacidade do Legislativo de criar e alterar leis, minando sua legitimidade. Terceiro, pode resultar em decisões que não necessariamente refletem a vontade do povo, já que os membros do Judiciário, ao contrário dos legisladores, não são eleitos.
Por fim, é fundamental ressaltar que a intervenção do Judiciário no Legislativo, embora possa ser necessária em certos casos para garantir a constitucionalidade das leis, deve ser feita com cautela e moderação. Manter a independência e a harmonia entre os Poderes é crucial para a manutenção da estabilidade e da saúde de nossa democracia.
Sempre gosto de lembrar dos idos acadêmicos de 1999, quando na UVV, até então Centro Universitário de Vila Velha, estudava nas cadeiras de Introdução ao Estudo de Direito, a teoria tridimensional do direito, elaborada pelo jurista brasileiro Miguel Reale, que ainda atualmente nos proporciona uma perspectiva valiosa para compreender a situação em análise. Segundo Reale, o direito é um fenômeno tridimensional que se manifesta através do fato, valor e norma, sendo estes elementos intrinsecamente conectados e indissociáveis.
O fato, no contexto da teoria tridimensional, pode ser entendido como a situação concreta, o cenário social no qual o direito se manifesta. Já o valor representa os ideais e princípios que a sociedade busca alcançar por meio do direito, e a norma é a expressão formal desses valores em uma regra jurídica.
Neste sentido, a lei é o resultado de um processo que envolve a observação dos fatos sociais (fato), a avaliação dos valores que a sociedade quer proteger ou promover (valor), culminando na criação da lei (norma). Esse processo é realizado no Congresso Nacional, onde os representantes do povo, democraticamente eleitos, traduzem as necessidades e valores sociais em leis.
Portanto, o processo legislativo é muito mais do que a simples elaboração de leis. Ele é uma manifestação concreta da democracia, um exercício do poder soberano do povo que deve ser respeitado. Ao mesmo tempo, a independência dos três poderes, consagrada pela nossa Constituição, também deve ser preservada, evitando-se que o Judiciário atropele ou interfira excessivamente nas competências do Legislativo.
Tendo em vista a teoria tridimensional de Miguel Reale, podemos concluir que a decisão do Judiciário deve levar em conta não apenas a norma em si, mas também o contexto social e os valores que a norma representa. Dessa forma, resguarda-se o respeito à democracia, aos valores sociais e ao processo legislativo, garantindo-se assim a harmonia e a independência entre os Poderes, pilares fundamentais do nosso sistema democrático.
A tarefa de declarar uma lei ou dispositivo inconstitucional, originado da representação da vontade popular no Congresso Nacional, é sem dúvida intrincada e delicada. A situação se torna ainda mais desafiadora ao considerar a aplicação de efeitos retroativos, invalidando o referido dispositivo desde o seu início. Conforme estabelecido pela Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, no Art. 3º, ninguém pode se eximir do cumprimento da lei alegando desconhecê-la.
Nesse sentido, é fundamental respeitar os cidadãos que, com retidão e respeito à lei, a acataram. Empresas, colaboradores, atividades produtivas e toda uma nação que segue as regras estabelecidas não podem ser retroativamente lançadas no campo da ilicitude ou inconstitucionalidade.
Analisemos o caso atual, avaliando os valores propostos e os efeitos práticos do acórdão e voto condutor (relator) da AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 5322: de um lado, tínhamos uma situação estabilizada por 8 anos, com o setor de transportes estruturado e, durante este período, não computando no custo da operação de transportes, as Horas Extras relativas ao fracionamento de períodos de descanso (que é uma demanda do motorista e não necessariamente das transportadoras), do tempo de espera; e das horas de descanso em movimento quando havia revezamento de motoristas.
Ressaltamos que, independentemente de investigar se é melhor ou não para o motorista ou para o transeunte, ou para outros motoristas no trânsito, ou para o cidadão em geral, que haja uma reorganização do trabalho para evitar a exaustiva jornada que impacta negativamente a taxa de acidentes e mortes nas estradas; e que é inquestionável que o direito à vida, à saúde e até mesmo a um trabalho justo são inalienáveis; também é inegável que, até o momento, existia uma lei que determinava, garantia e respaldava que a organização do trabalho fosse feita como estava até o momento do reconhecimento da inconstitucionalidade dos artigos da lei 13.103/2015 pelo STF.
No caso concreto: não se pode afirmar que as empresas de transporte estavam privando o trabalhador de seus direitos, praticando ato ilícito, ou se locupletando pela exploração da mão de obra do motorista (cobrando dos clientes por essas horas extras ou por mão de obra adicional ao precificar os serviços e embolsando essa diferença, isso não era o que estava acontecendo). Simplesmente, a lei foi observada, os preços foram estabelecidos considerando esse ambiente legal e assim as empresas de transporte atuaram durante esses 8 anos. Não faz sentido que elas despertem a partir de 30/06 de 2023, com passivos financeiros ou judiciais de 8 anos atrás por conta de uma decisão judicial que contraria o texto explícito de uma lei que estava em plena vigência.
É crucial que a decisão de constitucionalidade neste caso, assim como em todos os outros que vierem, de mesma natureza, quando tiver efeito vinculante ou erga omnes, seja automaticamente modulada para impactar os eventos futuros, a partir da decisão, nunca do passado (exceto em casos de natureza penal, quando beneficiar o réu).
Em defesa do Estado Democrático de Direito, da Democracia, da Segurança Jurídica e do progresso do nosso país, é essencial adotar como padrão o que já se constitui como regra no nosso ordenamento jurídico: as decisões devem ter efeito a partir do trânsito em julgado, excetuando-se os casos que envolverem penas privativas de liberdade ou que a decisão for restrita ao caso concreto. Tal postura ajudaria, indubitavelmente, a evitar a insegurança e o caos que estão, neste momento, perturbando a paz de caminhoneiros, empresários e de toda a cadeia produtiva que depende de transporte e logística em nosso país.
Esse é o caminho da Democracia, da Estabilidade, da Segurança Jurídica, do Estado de Direito. É do que precisamos, é o que merecemos! Transparência, confiança e segurança jurídica.
Por Caio Vinicius Kuster Cunha
[1] A modulação dos efeitos da sentença é a expressa determinação do momento em que uma lei declarada inconstitucional deixará de ter efeito. Isso pode ser a partir do momento da decisão (efeito ex nunc, que significa “a partir de agora”) ou retroativamente à data em que a lei entrou em vigor (efeito ex tunc, que significa “desde então”).
A modulação dos efeitos é especialmente relevante em casos em que a declaração de inconstitucionalidade de uma lei possa causar perturbação social ou insegurança jurídica. Nesses casos, o STF pode decidir que a lei continuará em vigor por um certo período de tempo, mesmo após ter sido declarada inconstitucional, para permitir que a sociedade ou o sistema jurídico se ajustem à mudança.